DE FERNANDO PESSOA, AO INVÉS DE UMA PRECE

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Posted by Ciro Bezerra | Posted on quarta-feira, 26 de dezembro de 2007

Augusto Lessa

Nesses dias que antecederam ao Natal, ouvi tanta coisa sobre amor, bondade, humildade, solidariedade, fraternidade... Eu disse: ouvi. Só ouvi. Por alguma idiossincrasia tenho evitado o ser humano. Não se trata de misantropia crônica, mas um afastamentozinho temporário. Esperei muito que nas festas natalinas alguns de meus conhecidos cristãos usassem, pelo menos uma vez, a famosa máxima do seu mentor: amai-vos uns aos outros. Nada. Só encontrei gente que sabia de tudo, estava certíssima de tudo, conhecia a diferença entre bem e mau, tinha altura moral pra criticar tudo e todos. Se os salmos deles não valem para nada, vai aqui um poema de Fernando Pessoa a título de lição de reconhecimento de insignificância. Resolver, eu sei que não resolve. Mas, pelo menos, sei que irrita.

POEMA EM LINHA RETA 

Nunca conheci quem tivesse levado porrada. 
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

 
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil, 
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita, 
Indesculpavelmente sujo, 
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho, 
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo, 
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas, 
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante, 
Que tenho sofrido enxovalhos e calado, 
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda; 
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel, 
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes, 
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar, 
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado 
Para fora da possibilidade do soco; 
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas, 
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

 
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo 
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho, 
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...

 
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana 
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia; 
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia! 
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam. 
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil? 
Ó príncipes, meus irmãos,

 
Arre, estou farto de semideuses! 
Onde é que há gente no mundo?

 
Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?

 
Poderão as mulheres não os terem amado, 
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca! 
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído, 
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear? 
Eu, que venho sido vil, literalmente vil, 
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.
 

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